Carta 3

CARTA 3
28/04/2020

    Escrevo-lhe estas palavras com muito pesar e alegria. É uma honra tê-lo como mestre, fundador, e
inspiração dos meus dias, dos meus trabalhos, dos meus escritos, e da minha motivação de viver e lutar por um mundo melhor, em contrapartida, é lamentável não ter você aqui conosco, de corpo presente. Mas apesar do corpo não estar presente, sua herança de ensinamentos estará sempre viva. Primeiramente tenho que agradecer, por me ensinar sobre o poder e a eficiência da arma que o teatro é, por me mostrar que o ato de transformar é transformador.

    Agora que já esclareci minha alegria e meus pesares, preciso me apresentar e contar-lhe algumas
coisas. Há exatamente cinco anos atrás, comecei a trabalhar com suas metodologias, e um pouco antes disso, foi quando o conheci através da Silvia Paes. Tenho certeza de que te lembras dela, quero que saibas que ela continua fazendo um trabalho incrível com o que você a ensinou, viu?

    Tenho trabalhado em escolas públicas de ensino médio, e periferias de cidades à margem. Escolhi
utilizar como metodologia principal dentro do teatro do oprimido, o teatro fórum, pois é o ramo da árvore que mais tenho identificação e facilidade para lidar e transpassar aos outros. Tem funcionado bem e a cada dia vejo evoluções, tanto em mim, quanto em quem passa por esse processo também. Ainda tenho muitas dúvidas que gostaria de perguntar a você pessoalmente, mas infelizmente o tempo não nos proporcionou essa dádiva. O que você faria, e como reagiria quando uma pessoa sai de si em cena? No caso da pergunta, a pessoa seria o espec-ator, que resolveu intervir na cena para resolver uma problemática, mas, por ser uma situação muito forte pra ela, começou a chorar descontroladamente em cena, sem conseguir concluir e ou se retirar de lá?

    É frustrante para mim, quando certas coisas acontecem. Mesmo com a experiência que arrisco dizer
que tenho, muitas vezes me questiono se agi da maneira mais adequada ou se poderia ter feito algo diferente. Sonho em um dia tê-lo em minha plateia a me observar, e depois disso sentar contigo em uma cafeteria ouvindo você me dizer os pontos que tenho a melhorar... seria de tamanha honra. Sempre me perco em meus pensamentos, e mal posso ser sucinta ao escrever-te essa carta, pois nunca havia pensado nessa possibilidade de colocar em um papel, palavras para alguém que não pode ler. Mas eu sinto, e sentindo sei que tu, independe de onde estiver, poderá sentir também através das vibrações que percorrem o meu corpo e me cobrem de emoção ao pensar em tudo o que aprendi com o que deixou aqui.

    Preciso te apresentar a Rafaela, aposto com todas as minhas fichas que seu coração se encheria de amor
com ela. Sempre falamos sobre você, e Cecília há de nos perdoar pela brincadeira, mas nossa admiração é tão grande que já o nomeamos como marido dela (risos). Você nos ensina até quando não estamos atentas a isso, quando paramos para refletir é que percebemos isso. Rafaela bebe da sua fonte sem ter medo de saciar-se, mergulha em teus oceanos sem medo de se afogar. E isso tudo, é porque ela acredita em uma educação libertadora, e se ela acredita nisso, foi porque você acreditou primeiro e nos deixou esse legado, que cumprimos com honra e sem nos cansar.

    Tenho imensa satisfação em dedicas os meus dias a pregar a sua arte, pois cada sorriso que vejo de pessoas que constantemente choram, me trazem de volta a fé na humanidade e a certeza que nunca devo desistir. Os resultados em quase 100% dos dias são positivos, e quando não são, me estimulam a melhorar mais e mais. Porque você me ensinou que desistir não é uma opção. Quero que saiba que através de uma peça com cenas fórum, apenas em uma tarde conseguimos com que 17 crianças denunciassem para a escola que sofriam abuso sexual dentro de casa. Esses relatos me causam arrepios sempre que me lembro.

    Não fico feliz com sua partida, apesar de entender que é necessária, talvez eu nunca saiba superar o
fato de não o ter conhecido ao vivo e em cores. Mas, me satisfaz muito saber que o senhor não teve o desprazer de conhecer o atual presidente do Brasil. Acho que se os mortos conseguem ter notícias da terra, a cada frase que ele fala você se revira em cólicas no seu tumulo. Pode parecer exagero, mas sinto que nem mesmo as suas metodologias que tudo são capazes de curar, tiraria o ódio e a ignorância que há nele.

    A sociedade hodierna está um caos, enfrentamos uma pandemia que não existe sequer um aviso prévio
de quando poderá acabar. Isso nos afastou de nossos trabalhos, lazeres e consequentemente, do teatro. Dói
todos os dias viver a saudade e as lembranças de como era bom trabalhar com as minhas crianças. E mudando de assunto mais uma vez, há mais ou menos duas semanas atrás eu assisti sua esposa em uma live ao vivo.  Você foi muito sortudo em poder chamá-la de sua mulher, ela é tão fofa, e ainda fala de ti como se sentisse o seu calor ao lado dela quando se deita em sua cama. Vocês juntos faziam um casal incrível.

    Me despeço aqui, pois sinto que jamais teria fim tudo o que tenho a lhe dizer. Mais uma vez ressalto a
minha gratidão ao homem que você foi, que você é!

Para todo o sempre, sua eterna admiradora,

Comentários

  1. Olá! Primeiramente gostaria de parabenizar o seu trabalho com o ensino médio e a periferia! Fiquei chocada ao saber que tantas pessoas assim já sofreram algum tipo de violência sexual dentro de casa, muito triste isso. Fico feliz ao ver a sua tremenda admiração por Augusto Boal, boa sorte o seu trabalho!
    Isabel Cristina Cristaldo Barreto

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  2. Ao ler essa carta, sinto a importância do Teatro Oprimido, e fico feliz de ver que pessoas como você estão usando essa metodologia para melhorar, nem que só um pouco, o nosso mundo. Então agradeço por não desistir sem lutar. Seu trabalho com essas crianças e adolescente faz a diferença.
    Millena Neves Mariano Pozzo - coc

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