Carta 10

Meu caro Amigo Boal,

 

Espero que esta carta encontre você bem e feliz.

Me perdoe, por favor, se eu não lhe faço uma visita, se eu não estou te atualizando com as notícias do lado de cá. A coisa aqui tá preta! O correio anda arisco, muito fake news. Até as cartas estão sujeitas a serem contaminadas pelo Covid-19, ele é um vírus destruidor, nasceu na China e virou uma pandemia. Aqui, além desse, também temos um outro problema. O Indigníssimo Presidente da República. O momento político é confuso, o governo está dominando tudo, blindando a família miliciana dele. O Ministro da Saúde foi demitido em plena pandemia pelo fato das ideias dos dois divergir, um pedindo para ficar em casa e o outro pedindo para sair e vida normal que segue, é só uma gripezinha. O Ministro da Justiça pediu demissão antes de ser demitido e denunciou o Presidente da República seu interesse e participação nas investigações da Polícia Federal, tudo isso para blindar o submundo dos seus filhinhos. Estamos querendo fazer um Teatro Jornal sobre essa matéria para que algumas pessoas consigam enxergar tal golpe na democracia. Mesmo que a evidência salta aos olhos, há quem não perceba que o Brasil está cada vez mais dominado pelos caprichos da referida autoridade. Não podemos nem fazer as Ações Diretas devidos as aglomerações, temos que manter o distanciamento social. Tempos difíceis.

Tive uma aula com o Prof. Dr. Rafael Litvin Villas Bôas da UnB falando sobre o Terra em Cena e com a nossa amiga e multiplicadora Silvia do CTO. Quanto diálogo amoroso, quanta troca. Ainda bem, sem isso ninguém segura esse rojão. Combinamos de multiplicar juntas. Estamos com planos e projetos. Estes depois te conto e uma carta única. Tenho feito muitas multiplicações com o Teatro do Oprimido nas escolas para combater o bullying e outros tipos de opressão, para desenvolver neles a solidariedade e a empatia. Estou buscando um espaço estético com um espelho de aumento que revela comportamentos dissimulados, inconscientes e ocultos.  Dia desses, na reunião de pais e na Festa da Família trabalhamos com temas de professores que batiam em seus alunos e pais em seus filhos. Fizemos dinâmicas e jogos, e também o Teatro Fórum. Meu caro amigo, você nem pode imaginar, tivemos pais e alunos spect-atores, revelamos pensamentos e desejos, descobrimos opressões e violência doméstica. Quando abrimos o fórum, o silêncio, e depois, as discussões profundas derrubando muros. A visão teatral de suas opressões envergonhava os opressores e, a muitos, transformava, vimos muitas máscaras sociais caindo. Foi um processo. Usamos o plano geral de conversão do espectador em ator do TO, dentro das quatro etapas: conhecimento do corpo, tornar o corpo expressivo, teatro como linguagem e teatro como discurso. Isso lindo todo processo, pungente. Lá na escola, os meus alunos estão maravilhados com os jogos, eles estão ajudando na desmecanização daqueles corpos e mentes. São alunos espetaculares, transformadores. Estão mais focados nos estudos e responsabilidades. Como você mesmo diz, o teatro deve ser um ensaio para a ação na vida real, e não um fim em si mesmo. Fico muito honrada em ser sua amiga e multiplicadora.

Meu caro amigo, aqui na terra não estão jogando futebol, tem muito choro, pouco samba e rock n’roll, mas o que eu quero lhe dizer que a coisa aqui tá preta. A Luíza manda um beijo para os seus, um beijo na família, na Cecília e nas crianças. O Clécio aproveita para também mandar lembranças. A todos pessoal. Adeus.


Comentários

  1. Consegui me identificar com a revolta expressa no primeiro parágrafo da carta e seria incrível utilizar o Teatro de Jornal para abrir os olhos daqueles que se recusam a ver que as coisas não estão bem e que nós quanto povo brasileiro merecemos pelo menos dignidade. Além disso, adorei a utilização do Teatro Fórum para lidar com temáticas mais sensíveis como a violência doméstica, pois dessa forma a relação do público não foi de apenas assistir, mas sim de participar e principalmente expor suas verdadeiras opiniões e não as opiniões moldadas para parecer ser uma boa pessoa perante a sociedade.

    Brislly Mariana

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  2. Muito contundente a forma como você usou o teatro, segundo as ideias de Boal, para dar voz aos problemas silenciados pela nossa sociedade, ainda mais partindo da visão dos seus alunos, jovens eu pressuponho, que por vezes não recebem a devida credibilidade para serem ouvidos. Tenho certeza de que foi uma rica experiência e admiro o seu sucesso.

    Anna Luísa Atayde.

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  3. Ana Clara Gonçalves - Espu COC

    Escritora, acredito que sua carta foi uma das que mais me tocou e passou um sentimentalismo real sobre tudo que vem acontecendo. Ao que você colocou nossa realidade numa escrita só, a ficha cai e a consciência percebe o caos que nos encontramos, uma realidade completamente atípica que às vezes chega a ser inacreditável.
    Seu trabalho com a violência nas escolas utilizando do Teatro do Oprimido e fazendo com que o agressor e a vítima entrem em uma conexão e um auto conhecimento, é simplesmente comovente. Tenho certeza que estes sentiram o que vocês propuseram, o que Boal já propôs.
    Espero que você continue mudando muitas vidas e ajudando essas pessoas a entender suas ações por meio do teatro. Boal se orgulha de você. Parabéns!

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  4. A construção textual é de uma originalidade impressionante. Ao relacionar a carta com a música “Meu caro amigo”, de Chico Buarque, o remetente estabelece um paralelo entre a ditadura militar e a atual ascensão do militarismo e do conservadorismo. Também expressa a instabilidade do governo e a falta de diálogo entre seus membros ao criticar o Presidente da República, bem como a descrever a confusa trama política que se desenvolve e a impossibilidade de manifestações públicas por causa do distanciamento social. Outro ponto marcante é o relato do uso do TO para o combate ao bullying. A proposta desse tipo de teatro se relaciona com a pedagogia de Paulo Freire, isto é, promover uma educação libertadora, o que, como mostra a carta, ajuda no desenvolvimento de atividades que buscam prevenir violências, além de criar consciência diante da opressão.
    Ana Beatriz- Anchieta

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