Carta 18

Caro Boal,

 

            Em primeiro lugar, gostaria de manifestar a minha profunda admiração pela sua pessoa. Sem saber, você tem uma grande importância na minha vida. Você e sua obra me inspiraram de tal forma que há cinco anos sou um multiplicador das técnicas do Teatro do Oprimido aqui em Brasília. Fui treinado por ninguém menos que sua aluna, a querida Silvia Paes, grande atriz, professora e ser humano com quem aprendi e ainda aprendo bastante.

            Como já disse, sou multiplicador do Teatro do Oprimido há cinco anos. Trabalho com pessoas portadoras do HIV. Dentre as técnicas do TO, a que mais tenho utilizado com meus alunos é o Arco-Íris do Desejo. Com muito tato, carinho e respeito, fui estimulando os alunos com os jogos e exercícios dessa técnica, e os resultados têm sido maravilhosos. Você precisava ver!

            Posso dizer que, hoje, o vírus não define mais nenhum deles – sim, eles se viam dessa maneira, marcados pelo HIV, como se tivessem a sigla carimbada na testa à vista de todos. Com a ajuda do Arco-Íris do Desejo, além dos surpreendentes resultados artísticos (temos montado uma peça por semestre), os alunos passaram a enxergar os pontos positivos de serem HIV+. Quase todos têm carga viral indetectável e são tão ou mais saudáveis do que muitas pessoas HIV-. Eles agora veem o HIV não mais como um castigo, mas sim como uma oportunidade que lhes foi dada para cuidarem mais de si, se amarem mais e, consequentemente, cuidarem e amarem mais o próximo, em especial os próximos mais próximos.

Fico feliz em ter contribuído para que eles não se vejam mais como sujos, imundos ou indignos de ter o amor de alguém só por estarem infectados. Afinal, ao meu ver, o HIV é um vírus como outro qualquer. O x da questão é que se trata de um vírus transmitido sexualmente e, infelizmente, sexo ainda é tabu em 2020.

            A propósito, querido Boal, permita-me fazer um parêntese. O contexto atual do Brasil nos dá a impressão de termos regredido séculos. Um ultraconservadorismo pseudo-religioso e um excessivo politicamente correto têm tomado conta das pessoas em geral. Preconceitos e questões que julgávamos superados, mesmo que parcialmente, parece que voltaram com força total nos últimos quinze anos. A impressão que dá é que o Brasil está caminhando a passos largos para se tornar um Irã neopentecostal.

Temos vivido dias sombrios, sob o jugo de um presidente que não tem o menor pudor em demonstrar seu desprezo pela arte, pelos artistas, pelos pobres, pelas pessoas fora do “padrão” e/ou que pensam diferente dele. Como se tudo isso não bastasse, estamos no meio de uma pandemia mundial causada por um vírus microscópico que, literalmente, parou o mundo. E, o citado presidente, bem como muitas figuras do governo, ao invés de cuidar de sua população mais vulnerável nesse momento tão delicado, está ocupado demais com picuinhas, em gerar polêmicas, crises e fazer amaças autoritárias, o que demonstra uma irresponsabilidade sem tamanho.

            Mas enfim, apesar de tudo, é da minha “natureza Poliana” tentar ver o lado bom das coisas e acreditar sempre que o melhor ainda está por vir. Devido ao fato de o coronavírus ser um vírus de alta transmissibilidade, estamos confinados em casa há quase dois meses, mas tenho visto esse momento como uma oportunidade de repensarmos muitas coisas que antes passavam batidas, diluídas na correria do cotidiano. Acredito que muito da minha personalidade tenha sido moldada pelo Teatro do Oprimido, esse teatro que dá voz aos que não são ouvidos e com o qual tive o privilégio de ter contato bem cedo.

            Bem, Boal. Era isso o que eu queria lhe dizer. Antes de finalizar, quero agradecê-lo mais uma vez por ter deixado de herança para o mundo esse belo trabalho que é o Teatro do Oprimido e que, literalmente, tem transformado vidas e mudado o curso de muitos destinos, inclusive o meu.

 

Aquele abraço!


Comentários

  1. Olá! Fico muito feliz em saber que você está ajudando as pessoas com HIV com os métodos do Augusto boal! Realmente essas pessoas precisam de ajuda e o teatro é uma boa maneira de ajuda-las com sua segurança e muito mais, realmente o preconceito é um problema muito grande que temos enfrentado ultimamente, mas com a ajuda de todos com certeza irá diminuir! E com certeza o melhor estar por vir!!
    Isabel Cristina Cristaldo Barreto

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  2. Caro escritor, estou admirado com o seu trabalho, utilizando o teatro como meio e forma de aumentar a auto estima das pessoas, vi um caso parecido com esse na psicologia, e fico feliz de ver que realmente funciona, pois esse seria um dos métodos que usaria em tratamentos. Obrigado pelo seu conhecimento, e melhoras aos pacientes.

    ass:Yan Ulhoa Vilela Sakayo

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  3. Muito feliz em ver que alguém esta dando voz para pessoas com HIV pois ainda se tem um grande preconceito sobre essa doença pelas grandes dificuldades que o portador tem que passar junto a todos com o próprio se relaciona juntando pessoas com o mesmo caso ajuda a perceber que não estão sozinhas e funciona como um grupo de apoio.
    David Leonel,3-EM ESPU COC

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  4. Estou feliz com sua atitude, pois durante esses anos você devolveu a humanidade a essas pessoas que tanto sofrem com o julgamento motivado pelo HIV. O que você faz expressa muito a defesa de Augusto Boal em “dar voz ao público”, visto que você foi além e deu voz a uma parcela da sociedade que não encontrava mais o próprio lugar. Espero que o Teatro do Oprimido continue te motivando e permitindo que mais pessoas possam ser influenciadas pelo seu trabalho.

    Ana Luiza Lira Barbosa

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