Carta 11

Cruzeta/RN, 28 de abril de 2020.

 

Prezado Boal,

 

Antes de qualquer coisa, seja lá onde é que você esteja repousando agora, gostaria que soubesse o quanto que sou grato pelos ensinamentos passados e por ter mostrado à minha inquieta alma um caminho a seguir. Desde pequeno, aqui, nesta cidade de pouco mais de oito mil habitantes, no Sertão nordestino, fui vítima das mais variadas formas de opressão que um homem gay podia suportar; vi, dentro de casa, como funciona o machismo estrutural e a violência contra a mulher; seres humanos famintos batiam a nossa porta em busca de comida; e as opções de trabalho da maior parte da população a minha volta não passavam de escravidão com direito a décimo terceiro salário. Diante desse contexto, não tinha outra alternativa a não ser buscar meu caminho. E foram quase vinte anos a esmo por esse percurso. Até que, atendendo ao chamado do coração, conheci você através das aulas do Teatro do Oprimido da faculdade que leva o nome de eterna Dulcina de Moraes, em Brasília. Claro que você não estava lá pessoalmente, mas sua presença era evidente, porque você também é eterno.

Anos depois, já tendo mergulhado em sua obra e trabalhado por algum tempo em comunidades carentes e unidades prisionais, sempre aplicando os métodos do Teatro do Oprimido, percebi que era hora de voltar às origens. Acreditava que era meu dever trabalhar para fazer a diferença na vida dos meus conterrâneos. Tinha decidido que essa seria a missão da minha vida. Entretanto, tinha esperança que, com a passagem de quase quatro décadas desde o meu êxodo, muitas mudanças positivas já deveriam ter ocorrido. Perguntava-me quais seriam as questões a serem trabalhadas naquele lugar que já tinha sido meu lar. Ledo engano. Pouco coisa mudou. O Governo Municipal continua nas mãos de poucas famílias, mesmas famílias, que se revezam a cada eleição fraudada pelo poder econômico e pelo comando das instituições sociais, educacionais e religiosas que controlam o povo desse lugar. O empoderamento feminino ainda não chegou por aqui de forma abrangente; a maior parte da população continua se submetendo a rotinas de trabalho exaustivas e pouco remuneras; e homossexuais ainda são alvos de chacota e motivo de vergonha por parte de suas famílias. Como vê, querido Boal, os desafios são enormes, mas é pra isso que estamos aqui, não é?!  

Minha estratégia ao chegar aqui foi formar, discretamente, um pequeno grupo – que nessa fase chegou a ter dez pessoas – e realizar diversas cenas do Teatro do Invisível. Assim pudemos conhecer melhor as questões socias mais problemáticas do município. A partir daí, iniciamos vários estudos individuais e coletivos, para entendermos as origens dessas questões. Esses estudos contaram com a ajuda de uma professora de História – Regina Soares têm alguns livros publicados sobre a cidade e compartilha dos nossos valores – que também já tinha trabalhado com teatro amador. Duvido que o senhor fique surpreso se eu disser que o grupo desconhecia vários dos fatos mais importantes que haviam acontecido em pouco mais de cem anos dessa cidade. Mas o mais marcante dessa etapa inicial foi quando aplicamos o Arco Íris do Desejo. Nossos alunos ainda não tinham ideia de que, antes de mudar a realidade local, eles precisam lutar contra aquilo que os oprimiam. Houve aqueles que se negaram a encarar as suas próprias questões e nos deixaram, mas foi por pouco tempo. Logo estavam de volta, dispostos a vencer seus medos. Quatro meses depois de nossa primeira reunião, já estávamos nas ruas, nas escolas e nas comunidades rurais pondo em prática o Teatro Fórum.

Nesses cinco anos de trabalho, já apresentamos cinco espetáculos resultantes de longas oficinas teatrais, nas quais seus jogos foram os principais exercícios utilizados na formação dos atores. Montamos Ariano Suassuna e João Cabral de Melo Neto, como forma de valorizar os clássicos regionais. Também criamos nossos próprios textos, livremente inspirados na obra e lições de Bertold Brecht, para falarmos sobre fatos e personagens da própria cidade. Estamos formando aqui, neste lugar de poucas oportunidades, pelo menos quatro dezenas de bons atores e, principalmente, vários cidadãos. Gente que encontrou no teatro a vocação para ser o agente transformador da sua própria realidade. Sabemos que estamos só no começo e que os desafios são enormes, mas a mudança já é uma realidade. E isso, meu velho amigo, nos creditamos a você. 

 

Com carinho, do seu discípulo.


Comentários

  1. Òtimo exemplo de como o teatro pode transformar a realidade social individual e coletiva mobilizando indivíduos de maneira democrática. Tudo isso facilitado pelas ''novas'' formas de fazer teatro desenvolvidas por Augusto Boal: Teatro do oprimido, teatro do invisível e teatro fórum.

    Felipe P. Barbosa
    Cor Jesu

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. O trabalho que está desenvolvendo é muito importante e significativo, ajudando as pessoas a se encontrarem e tendo um alto conhecimento e poder promover isso para outras pessoas. Através do trabalho que realiza trás conforto e esperança a muitas comunidades, é uma forma de busca em que cada indivíduo possa começar a olhar o mundo e as oportunidades de outras formas Aluna Marcelle, colégio Cor Jesu

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  4. Um projeto que inspira. Augusto Boal como um mestre, um professor conseguiu transformar situações de alunos possibilitando o estimulo e a ação emancipadora, libertadora, curadora, transformadora, contribuidora, sonhadora e também de oportunidade para os oprimidos. Além disso, como você relatou possibilitou o oprimido de ser o agente transformador da sua própria realidade.
    Letícia Ribeiro Monteiro Castro

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  5. A carta é muito tocante. Vemos como o Teatro do Oprimido está intimamente ligado à história pessoal do remetente. Por meio dele o autor conseguiu se libertar das opressões que sofria. Também apresenta questões sociais muito profundas, como o machismo, o racismo e a homofobia, mostrando como o conhecimento da história local e a valorização da cultura através do teatro podem ser essenciais para uma revolução.

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